sábado, 3 de janeiro de 2015

O sangue fala?

O sangue fala?


Ou seja, será que o nosso sangue, consegue determinar quem somos e o que somos?
Se eu recebesse uma transfusão de sangue de um chinês, eu acordaria com vontade de comer o pequeno almoço com pauzinhos e de semear arroz no jardim do condomínio?




Não. Claro que não. No entanto, o sangue é algo que as pessoas levam muito a sério. Tanto na minha comunidade como fora dela.
Os pertencentes da nobreza, e da família real eram e ainda são consideradas pessoas de sangue azul.
Isto é uma observação curiosa que eu gostava de fazer. 




Cada vez mais torna-se evidente que as comunidades ciganas absorvem os costumes e os preservam como mais ninguém o faz.
Grande parte dos costumes ciganos, são costumes adquiridos de eras passadas nas quais viviam os nossos antepassados, mas que preservaram para si, e depois foi passado para nós. 


Enquanto a população maioritária adquiriu novos costumes e hábitos. O que faz de nós hoje, um povo rotulado como antiquado.



Costumo dizer que os ciganos, são os portugueses de há décadas atrás. As mulheres casando virgens, namoravam à janela de casa, os rapazes pediam a mão da rapariga aos pais, a palavra valia muito e tinha muita honra, as viúvas ficavam muitos anos, ou em algumas aldeias e cidades, para o resto da vida de luto, as mulheres eram mais de estar por casa, entre outros mais exemplos.



Quem fosse da realeza ou alguém nobre, isto é, duques, heróis de batalhas, alguém envolvido na politica, era encarado como alguém de sangue azul. Quando uma família nobre é soberana de um território, o nome da família passa a ser chamada de “casa”.


Por exemplo: Duque + Casa + (o nome da família) = Duque Dom João da família/casa Morais.




Quando alguém queria falar sobre uma família, ou escrever sobre eles, ou anunciar a sua chegada era assim que eram anunciados.
Hoje os ciganos estão divididos da mesma forma. Por famílias, por casas.
Ex: João da família/casa tal.



Mas bem, não vamos fugir ao tema.
A questão é que as pessoas que eram de sangue azul eram tratadas e vistas como pessoas de outra elite. Tudo isso, porque tinham sangue azul.



E se uma pessoa vestisse uma boa roupa, soubesse as regras da etiqueta, e entrasse à socapa numa festa da antiga nobreza? Não passaria este também por alguém de sangue azul?



Os árabes, hindus, ciganos, outros povos do Oriente não “permitem” que existam os casamentos fora da cultura. Porque não partilhamos o mesmos sangue. Ou seja, não foram educados dentro da mesma cultura, o que significa que não partilham os mesmos ideais nem encaram a vida da mesma maneira. 


Mas é o sangue, ou a cultura que é importante?
Eu conheço ciganos/as que são filhos, netos, bisnetos, tataranetos, tatatattatatatatatatatatatatanetos de ciganos, e que o seu modo de vida, de cigano, não tem nada.



Não vou falar de rasgos físicos pois acho que muitos já podemos comprovar que a comunidade cigana não são um povo homogéneo. 

O mais natural é que sejamos morenos de olhos escuros, sim, mas há imensos ciganos mais claros, loiros, ruivos, carecas, brancos, meio claros, escuros, quase negros, com sardas e etc.



Eu já sabia de isso, mas houve uma situação que fez esse facto se confirmasse.
 Conheci uma cigana que era da Índia.


 Se ela nunca me chega a dizer que vem da Índia nunca teria adivinhado. Super pálida, olhos verdes, nada a ver com o estereotipo da mulher indiana.
Cigana... da Índia... pálida de olhos verdes, é dose.



Quando eu confrontei-a com este facto, ela disse-me que a mãe é cigana também, mas que não era indiana. É inglesa salvo erro. Mas que o pai é totalmente indiano.
Eu vi a foto do pai pois eu não conseguia acreditar. 




O pai é o típico indiano de olhos rasgados bem escuros, pele cor de canela, e cabelo abundante super preto. Costuma-se dizer que os genes do pai são os mais predominantes mas... caramba..um indiano ter uma filha pálida como o cal e de olhos verdes?!



Em inglês, ela pergunta-me:


- Estas a ver? Esse é o meu pai, esta é a minha mãe. Tal como te disse, sou indiana mesmo. Que dizes?



Eu fiquei a pensar...mas tive que acabar por responder:


- Que fraqueza de pai o teu!



Não tinha os rasgos típicos indianos, a mãe não era da Índia, mas foi criada como uma cigana indiana. Que ela tenha os olhos verdes faz dela menos indiana? Claro que não. Paremos de ser ignorantes por favor.


Ou seja, refiro-me ao modo de pensar e de estar na vida. Existem pessoas que descendem de famílias inteiramente ciganas, ou hindus, árabes, o que seja, e que de da sua cultura tem pouco. Uns porque não foram educados como tal, outros até por escolha. 


No entanto há pessoas que levam nos seus genes “sangue não cigano”, e que são mais ciganos que os anteriores que referi.



Porém, as pessoas que levam nos seus genes alguns glóbulos de sangue “não cigano”, são vistos como menos ciganos em comparação aos outros que vem de famílias inteiramente ciganas, quando talvez, as suas vidas desviem-se várias vezes do seio cultural.




Para muitas pessoas é isso que conta. Um pai cigano tradicional poderia sentir-se mais orgulhoso em entregar a sua filha para um jovem “inteiramente” cigano e que este tenha o seu avô num lar (são exemplos) , do que casa-la com um jovem em que o seu pai ou avô seja uma pessoa não cigana, e que até vive inteiramente a cultura e as leis.



“Eh pah.... o teu avô não é cigano.... a tua tia materna também não é..... fazendo as contas...tu tens..... um quarto e meio de sangue cigano só.”


O que é um pouco estúpido admitamos. 



O que é que o sangue pode determinar sobre uma pessoa?
A minha mãe é uma espanhola. Não é cigana. A minha mãe está com o meu pai desde os 14 anos e integrou-se por inteiro na comunidade. 

A minha mãe tem mais anos de cigana, do que de não cigana. Então, de uma maneira inevitável, quando ela me teve, criou-me dentro dos parâmetros ciganos. Tanto ela como o resto da família.



Não de uma maneira obrigada ou forçada. Mas de uma maneira natural, é inevitável.
A minha avó paterna que Deus tem, também não era cigana. No entanto o meu pai e todos os meus tios e tias são ciganos. Porque foram criados como tal.
Há algo que eu detesto. Muitas pessoas olham para mim e dizem:


“Bem, és mediadora cultural, falas muito bem português, publicas-te um livro, tens o 12º ano, conseguis-te chegar à faculdade, tiveste um emprego por 4 anos, tens carta de condução, muito bem.... é normal... a tua mãe não é cigana, está explicado.”



Desculpe senhor/a?...repete lá isso outra vez para ver se ouvi bem..



Eu sou mediadora cultural mas porque lutei muito por isso. Eu falo bem o português (com imenso sotaque e utilizando muito o gerúndio) mas porque eu sempre fui uma pessoa que lê muito e na minha família as pessoas falam o português correto (com muito gerúndio repito). 



Eu publiquei um livro mas suei 6 anos para o conseguir. Eu tirei o 12º ano e só Deus sabe a luta que eu tive. Desde inscrever-me às escondidas no ensino recorrente, entrar e sair em várias escolas, cursos alternativos, muitas lágrimas e força de vontade. 

Tinha de inventar mil e uma desculpas para poder ir às aulas. Tive um emprego porque houve uma necessidade económica na minha família.



 Arranjei trabalho porque um dia, um projeto em Espinho, precisou de uma dinamizadora cigana. Porque senão o provável era que eu ainda estivesse a entregar currículos como andei 2 anos antes de ter conseguido esse emprego. 

Tenho carta de condução porque na maior parte das comunidades já é algo comum. Não descobri petróleo



Eu sofri o que sofri para chegar onde cheguei... e dizem que foi fácil?
Não foi fácil. E quem me conhece bem sabe que é verdade. Lutei uma batalha muito dura para poder obter o pouco de formação que hoje eu tenho. 


Fui e sou uma mulher cigana como outra qualquer, que foi educada dentro de regras e aspetos culturais ciganos. Ninguém me venha dizer que foi fácil porque eu tenho uma mãe, ou tive uma avó, que não tem “sangue” cigano.








Invertamos a situação agora...

O facto de eu ser cigana já me fez provar que essa importância do sangue não conta para nada.

O meio de trabalho mais comum na comunidade cigana são as feiras. Tenho na família muitos feirantes. E os que não são, já o foram um dia.


A minha mãe gosta muito da atividade da feira, o meu marido também. Antes de eu casar a minha mãe, contra à vontade do meu pai, decidiu dedicar-se à feira. 

Houve aquele momento da vida em que ela sentiu a necessidade de ajudar o meu pai com as despesas da casa. A minha mãe comprou o material, e lá tive eu que ir com ela para ajuda-la.




Vendíamos óculos, depois vendemos roupa também. Eu odiei essa fase da minha vida. Decididamente, a feira não é para mim.
Muitos ciganos não conseguem entender isto. 


A vida da feira é boa, levanta-se cedo, dá tempo para tudo, socializa-se muito, é ao ar livre, não há patrões, e quando a feira corre bem, consegue-se arrecadar um salário, somente com um dia de trabalho.



Mas eu odiei meus amigos. É bom ser patrão de si mesmo, não dar contas a ninguém, ver e conversar com os amigos e tal, mas eu simplesmente não tenho a mínima paciência nem vocação para as vendas. Neste caso, a feira, que requer seduzir clientes.




Vinha uma senhora à minha banca. A banca cheia de roupa, montes de clientes para atender, uma confusão enorme, e a senhora diz-me assim:


- Quero esta camisola, tamanho S,  tem menina?


- Tenho meu amor, claro que sim, já já te a dou.


E dou-lhe a camisola tamanho S


A freguesa fica com a camisola na mão, apalpando as fibras e a olhar para ela com um olhar perdido. Minutos depois ela manifesta-se.


- Não tem esta camisola, tamanho S, mas em verde?


- Tenho linda, tá aqui, olhe que linda tá a ver? Ponho num saquinho?


A freguesa não responde. Pega na camisola, tamanho S, cor verde, e fica novamente a olhar para ela com um olhar perdido a vagar na terra do Oz.


- Não tem esta camisola, verde, mas tamanho S e 3 quartos?




- Tenho meu anjo, tome.


A cliente fica com a camisola verde, tamanho S e 3 quartos na mão e um olhar perdido.


- E esta camisola, tamanho S e 3 quartos, verde... mas aquele verde...sabe assim... a fugir para o roxeado... que lembre as planícies de Beja... e que tenha os pontos das bainhas em dourado..aquele dourado tipo tigre Bengala. Tem?


- Oh mãe que minita..... tenho meu amor... eu tenho tudo... (já cheia de nervos)....tome lá a sua camisola tamanho S e 3 quartos, verde a fugir para o roxeado que lembra as planícies de Beja e com os pontos das bainhas em dourado, aquele dourado tigre Bengala. Arranjo-lhe um saquinho?


- Deixe lá, eu vou dar uma voltinha primeiro.


- Ai.. a sério senhora?






Eu já ficava de mau humor. Vinha a próxima cliente:


- Qual é o preço da camisolinha?


- 5 Euros.


- Tão caro meu Deus


- Caro?..... caro 5 euros?!!....


- É. Tem esta camisolinha tamanho S em verde?


- Tenho mas só a procuro se voce a levar, caso contrário não.


- Você é rabugenta menina. Vou a outro sitio comprar a camisolinha. Vamos à banca do senhor Montes.



- Vá, vá lá. Boa viagem e não voltes. E se voltares mais te vale que tragas uma camisola para mim também.


Não vendia muito. A minha mãe depois de uns meses decidiu que eu era mais rentável se ficasse em casa a arrumar e a cozinhar.



Lá por eu ser cigana não significa que tenha de ter a arte para vender e que adore a feira.
Quem me dera a mim... mas quem me dera a mim... poder ficar em casa! Sim, em casa.


Arrumar a casa, cozinhar, cuidar das coisas, e da família, e por-me a estudar. Dedicar-me a 100% à faculdade.



Mas trabalhar? Só pela necessidade mesmo. Não tenho vergonha de admitir: Eu nasci para ser sustentada.
Sempre quis muito estudar, sempre gostei de fazer voluntariado, desenhava e pintava muito. 


Eu até cheguei a frequentar aulas de artes. Ou seja, eu não trabalhava mas mantinha-me sempre ocupada a fazer atividades produtivas. Mas trabalhar? Só se houver a necessidade mesmo. E se for o caso, trabalho com bom gosto.




As mulheres ciganas são muito trabalhadoras é verdade, mas o facto de eu ser cigana não tenho o porque de ser como as outras. Faz parte de mim.


Eu não tenho medo de trabalhar. Eu trabalho onde for e no que for sem problema nenhum. Mas eu não trabalho numa questão de realização pessoal ou com anseios de ter o meu próprio dinheiro. Nah.. eu sou muito realizada a cozinhar em casa e a estudar à noite.
Era a melhor coisinha que me podiam dar.



Houve uma outra situação que deixou sequelas gravíssimas na minha vida.

Houve uma formação de trabalho. Na altura eu era dinamizadora comunitária e fazia parte de um projeto promovido pelo Programa Escolhas. Estas formações eram habituais.


Uma delas era, e com certeza continua a ser, destinada para os dinamizadores. Era Verão, pleno Agosto. E o Programa Escolhas junta todos os dinamizadores do país numa formação de 3 a 4 dias.
Esse ano o Escolhas é inovador e decide desenvolver a formação num parque de campismo. 




Quando eu recebo o email eu comecei a chorar. Não tenho vergonha de o dizer. Chorei mesmo sim! As minhas colegas de trabalho só se riam lógico, e eu na cadeira sentada a chorar, sem acreditar que eu.... eu.... Tânia...ia acampar. Arrepio só de me lembrar.


Amigos, eu respeito e gosto da Natureza. Mas ela no sitio dela e eu no meu. Se ainda for uma viagem na montanha, serra, casa rústica e tal, eh é fofinho, ainda passa. Mas não num parque de campismo, com calor, partilhar um chuveiro sujo com um monte de pessoas que não conheço, bichos de cores esquisitas, até a relva parece-me demoníaca. 


Não, não é para mim. Eu posso admirar a natureza desde um sitio limpo e sem bichos. Para mim, uma fotografia já serve.
E lá fui eu rumo a Lisboa, com uma mala enorme de viagem, cor rosa choque, uma mochila, a minha mala de mão, aquelas normais que qualquer mulher leva para todo o lado, e uma colchonete para ir acampar. Só se via cabelo e malas, não se via mais nada.



Chego lá, a suar, e a equipa do Escolhas diz que somos nós mesmos que temos de montar a nossa tenda. Eu viro-me para o meu querido amigo Carlos Silva e digo-lhe assim:



“Cola-te a alguém que não seja cigano. Se ficares com o Cliff não tens tenda”



Dito e feito amigos. Estavam mais de 100 dinamizadores a montar as tendas, dobrados no chão, e no meio dessa pequena multidão destacam-se 5 pessoas que estão de pé. Os ciganos.
Não que sejamos preguiçosos e não quiséssemos participar. 


Simplesmente não sabemos montar uma tenda e tivemos que ajudar em outras coisas. Sei que provavelmente muitos daqueles jovens nunca tenham montado uma tenda na vida. Mas eles montaram.


As pessoas que não são ciganas estão já preparadas para essas coisas. Sabem fazer tudo, já está nos genes. Com um prego e um martelo fazem uma casa. Acredite em mim.
Um cigano compra um brinquedo para o filho, uma bateria, uma passadeira, o que seja, tem de pagar a mais para o técnico ir montar em casa. 



Se houvesse um evento apocalíptico, invasão de zombies etc, os ciganos eram os primeiros a morrer.
Na formação, todos os que não eram ciganos estavam contentes, sorridentes, participativos, a brincarem, consolados com o comer, com tudo. Na hora de ir dormir, assim que encostaram a cabeça no chão adormeceram logo. Que alegria tão boa.



Era Agosto, durante o dia marcou os 40,41 graus. À noite não faço ideia que temperatura marcava mas estava MUITO calor.


No meio daquele calor todo, a “dormir” no chão, com bichos barulhentos e a minha companheira de tenda dormia como se estivesse a dormir num hotel de 5 estrelas.


Que ogação... que paz tinha. Eu eram 4 da manha e ainda estava acordada. Estava sentada com as pernas cruzadas,  e a chorar.  Liguei para a minha mãe e não me atendeu ainda fiquei pior. Queria lamentar-me com alguém.



“Ai que mal estou me Deus, ai que fome tenho, ai que calor, ai quero tomar banho”



Não aguentava mais, saio da tenda, noite escura fechada mesmo, precisava de ar.



Cá fora estava um rapaz a fumar um cigarro:



- Então ciganita não dormes?



- Ui pai quem dorme assim?! Com este calor, tenho febre, tenho fome, preciso de um banho e há um bicho que faz um barulho muito esquisito.



- Pois é normal, com o barulho dos gambuzinos é normal não conseguires dormir (ele estava à brincar).


- O que é gambuzinos?




Eu falei a sério. Eu nunca tinha ouvido falar o nome de essa criatura. Talvez quando isso ficou na moda, eu nem sequer vivia cá. Olha, sei lá.
 O rapaz vê a minha inocência. Apercebe-se que eu nunca tinha ouvido falar sobre gambuzinos, e aperta no gozo.


Não sabes o que é gambuzinos?... são lixados eles. Não tenhas cuidado não...


- Ai a sério?... que morras tu?...ai “pa” pior...
 Nisto ouço um lamento de fundo:



“Oh pai....oh que calor......oh me Deus....”


Não conseguia ver nada, não havia lampiões de luz na zona. Eu reconheci aquela voz que se lamentava na noite.



Agora, imagine comigo esta cena:



-Cliff...és tu?



- Ai oh Tania....acode-me ......ai onde estás?


Ai... o que é?....que assoro, continua a falar para eu te ouvir...


De repente uma terceira voz...


- Sansão és tu?



(Sansão foi a alcunha que o Carlos me pôs. Segundo ele, a minha força toda esta no cabelo. Tal como Sansão)



- Sou Carlos... onde estás?


- Ai oh mana...ajuda-me não consigo me levantar...


- Não consegues te levantar porque?



- Sei lá! estou todo colado...



Lá nos encontrámos e ficámos sem dormir os três.



Na manhã seguinte, todos estavam tão bem dispostos, tão felizes, cheios de saúde. Nós parecíamos uns refugiados.


Um rapaz pergunta-me o que se passa. Eu disse que não tinha dormido a noite toda, que estava doente (e estava mesmo), que não suporto o calor, que acampar não é para mim etc.
E o rapaz, com toda a naturalidade do mundo, diz-me assim:



“Mas és cigana... tipo.. estás no teu ambiente.. ao ar livre...é o vosso habitat... oh habitat não....oh pah  desculpa... tipo... tu percebes-te”

- Ai.. vou te arranhar todo.



Ou seja, por ser cigana, pensou que eu tinha gostos pelo ar livre.


Se um casal cigano, dá o seu filho a um orfanato, e este é adotado por uma família não cigana na Noruega, será cigano?



Não. Não irá ser. Tem pais biológicos ciganos sim, provavelmente até tenha uns rasgos típicos, mas não é cigano nem nunca será.
Isto porque a família que o adoptou não o educou como cigano.



Se um casal cigano, que tenha problemas de fertilidade, decida adotar uma criança, o seu filho será visto como um não cigano?


Não, claro que não. E quem o faça é ignorante e está equivocado. A criança poderá ter sido concebida por pais não ciganos, mas estes pais ciganos, agora, o educarão como cigano.




Perguntam-me muitas vezes isso.


“Tânia, quando tenhas um filho/a como irás educa-lo? Como cigano/a?”



Sim.. claro. Não porque eu vá impor isso. Mas é um processo natural. Eu irei passar para os meus filhos, os valores que os meus pais passaram para mim. Passarei também os valores que eu mesma adquiri na vida. E ambos, são valores ciganos. Porque foi, e é, a vida que eu tenho.



O meu marido é um caso raro. Quem o conhece sabe bem de que estou a falar.
Ele é mais cigano do eu, e do que o meu pai, e mais do que 20 juntos.

E porque nós dizemos isto? Porque o Victor é esperto, é inteligente, é desenrascado, é sabidolas.

Mas espera lá... então... os ciganos são TODOS assim? 



Não, claro que não. É uma questão de personalidade. No entanto todos nós pensamos assim.

O Victor sempre adorou a feira. Demorei muito tempo a convence-lo abandonar a feira. Isto porque a feira já não rendia como antes e as despesas de casa eram muitas.
Mesmo com emprego, o Victor sempre vendeu, e ainda vende, isto e aquilo.




O Victor em 4 meses de trabalho na SONAE foi premiado como o melhor vendedor a nível nacional, por 6 meses consecutivos. Subiu de posto muito rápido.
É a típica pessoa que vende areia num deserto. 



O Victor vai visitar imóveis e os senhorios entregam-lhe as chaves dos apartamentos sem ele ter dado um euro sequer ou sem mesmo ter dito que queria o apartamento. Ele faz sentir aos senhorios que é um privilégio te-lo como inquilino. Não sei como ele faz isso.



Um dia, o Victor arranjou uns relógios para vender. Íamos ao cinema mas ele disse que antes tinha de passar num sitio para mostrar uns relógios a um rapaz.
Lá fomos. Chegámos, e o Victor abre a mala do carro. Eu fico a observar toda a cena dentro do carro, e a ver tudo através do retrovisor lateral. O Victor agarra na caixa, abre e fica estupefacto.



Olha para mim pelo espelho e vejo que ele tá:







O rapaz diz assim:

- Oh Bitinha... o relógio não tem vidro...


Julgo que durante a viagem a tampa do vidro saltou do relógio. Estava estragado. À vista de todos.


O rapaz continua:


- Fogo que azar Bitinha... sem vidro...


Segundos depois, ele raciocina e diz assim:



- É assim o relógio.



Nem acredito que ele disse aquilo. Pensei para mim mesma.


- É assim?



- É... nunca viste os relógios assim?...fogo... é o que está na moda.


- Relógios sem vidro Bitinha?!



- Sim filho... estás todo tanso.. não sabes nada.... estes relógios são assim...



- Txei que cena.. a sério Bitinha?



- É pah a sério. Só que isto não pode ser usado com qualquer roupa... tens de ter cuidado.. se não os ponteiros vão à vida não é?... tipo isto é alta pinta.






Vendeu o relógio. E pior... nos próximos 3 dias o telemóvel do Victor não parava de tocar.


“Oh Bita... arranja-me um relógio desses que vendes-te ao Sandro pah!”



Estive eu em casa....



PAM....PAM.....PAM..... a partir o vidro dos relógios contra a mesa para serem vendidos aos amigos do Sandro.
Ainda fizemos um dinheirinho.






Ou seja, ele nasceu com esse paleio. Faz parte da personalidade dele. O facto de ele gostar de feiras e de vendas, nada tem a ver os seus genes. O pai dele é talhante.




Até que ponto damos importância a isto?
Quem é colombiano tem que ser amante do café?
Quem é cubano tem que ser excelente a dançar a salsa?



Há coisas que realmente acredito que venham da alma. Os ciganos são indivíduos muito musicais e é algo que faz parte do “património” da nossa cultura. Mas há ciganos que não sabem cantar nem tocar nenhum instrumento. 

No entanto conheço um francês que é uma fera a tocar flamenco com as caixas e com a viola. Há uns chineses a dançar bulerias que deixa qualquer um de boca aberta.



Há “brancos” que até se safam a dançar e há aqueles que tem dois pés esquerdos, bacias muito soltas,  e tocam palmas como se não tivessem pulsos. 


Palmas com as mãos moles, parecem feitas de gelatina, não sei explicar esse fenómeno.
Quando batem palmas parecem focas a agradecer ao publico. 



Há portugueses que odeiam o Quim Barreiros. E um outro mar sem fim de exemplos.


 O que faz de nós as pessoas que somos, são os nossos valores, as nossas paixões, a nossa educação e a nossa essência humana. Eu não sou cigana porque tenho este sangue. O meu sangue é A Negativo. Eu sou cigana de coração, criação e de alma.


No fundo, não deixamos todos de ser seres humanos, com a mesma anatomia.
Cada pessoa é um mundo, é um universo. Todos tem a sua cultura pessoal, mesmo as pessoas “brancas” tem as suas tradições.



São estas diferenças que dão cor ao mundo e que enriquecem tanto a raça humana. Que lástima que não seja encarado assim.
Que pena, que exista o padrão do ser humano. 


Um manual, de ter que ser assim ou assado, e que quem fuja a essa regra é visto como uma pessoa não especial, mas sim esquisita e anormal.


Que bom seria que todos pudessem ser abertos e recetivos às diferenças, aos sabores, cores, gostos e sons e que todos nós temos para mostrar e ensinar. Que pena que a humanidade esteja tão longe de si mesma.




Tânia.

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