6h da manha…”acordo”… fico sentada na cama uns minutos a
olhar para um chinelo ou para o carregador do telemóvel, pensando no sentido e
significado do universo. “Levanto-me”, vou aos tombos pelo corredor até à casa
de banho. Ouço a minha mãe de fundo, no entanto ela está mesmo ao meu lado.
“Despachate “fiya”
que no pódemos llegaré tarde a la feira” (o tipico sotaque da minha mãe)
Meto-me no duche. Continuo a pensar no sentido do universo e
que raio será um buraco negro. Tomo banho com esperança de acordar e por tudo a
funcionar. Maior parte das vezes a missão não é bem sucedida.
Visto-me. E desequilibro-me a tentar calçar a meia. Faz
calor, mas melhor ir de ténis, a feira “suja” muito. Agarro-me na parede. Vejo
a silhueta da minha mãe e a sua voz de fundo de novo.
“Pon el protector solar”
Preparo a mala. Odeio andar de mala. Porque as mulheres tem
de usar mala?
Lenços de papel, nunca há papel na casa de banho na feira.
Se bem que eu NUNCA vou à casa de banho da feira.
Protetor solar. Óculos de sol. Lenço para limpar os óculos.
Carteira… ok…acho que está tudo.
Carrego com os sacos até ao carro. Toda a gente pensa que por
eu ser gorda tenho força. Não tenho. Mal consigo segurar um garrafão de água. O
caminho da porta de casa até ao carro é infinito para mim.
Entro no carro. Vou atrás com os platex. A minha irmã é muito mais alta que eu. Então tenho de
ir eu atrás. Elas conversam entre si. Mas só metade do meu cérebro é que está a
trabalhar.
Conversam sobre o que se jantou ontem, ou sobre o que se passou em casa do tio, ou sobre
se vai haver rusgas ou não na feira hoje. Como disse, só metade do cérebro é que está a
trabalhar. E estou em jejum. Elas sabem que eu não sou de conversa sem beber
café. Limito-me a olhar para a janela.
Chegamos à feira. Faz calor. A primeira coisa que vejo são o
casal adorável que não faltam a uma feira. Ambos quase a chegar aos 60 anos,
ambos de luto, lá estão eles, entre os dois, a montar a sua banca, toldos e
tudo mais.
Crianças dos 2 aos 5 anos choram nas carrinhas. Uns de sono.
Outros com calor. Outros porque o irmão tirou-lhe o carrinho com o qual ele
estava a brincar, outros simplesmente porque não queriam estar ali.
- Bom dia Tania, já sei que estás em jejum, mas hoje vamos
vender muito filha muda essa cara, há que ter fé!
- Bom dia tia sim eu..
- Já sabes que não quero que me chames de tia!!
- Esqueci-me tia. Sim Paula, hoje vamos ver como corre.
- Fiya no trates de tu a las personas mayores!! (minha mãe)
- Filha, eu é que precisava de uma sessão dessas. Quando
tirar o luto sou o primeiro. Preciso de relaxar. (o marido adorável)
- Sim tio, é só dizer.
Vamos tomar pequeno almoço. À mesma roulotte de sempre. O
Jorge e a sua esposa susy. Novinhos. Casaram cedo mas já trabalham juntos há
muitos anos. Há que fazer pela vida. Não são ciganos.
- Ora para a espanhola é um queque..meia de leite…para a
Natasha croassaint misto prensado…para a Tania que está a dieta é rodela de pão
de mistura torrado com 2 rodelas de tomate e um sumo de laranja.
Faço um sinal de fixe ao Jorge apenas para confirmar o que
acabou de dizer.
A minha mãe nos acompanha no pequeno almoço e vai embora.
Vai trabalhar. É cozinheira num dos
restaurantes que a minha tia tem aberto.
Eu e a minha irmã, depois do pequeno almoço começamos a
montar a banca. Toca a vender.
Faz imenso calor. Tenho de tirar os óculos de sol. Porque
são dos chineses. E eu sou vesga, não vejo mesmo nada, e os óculos de sol só me fazem ver pior.
Porque será que ainda não consegui arranjar dinheiro para
comprar uns óculos de sol com graduação?
Demorou ainda 1h para poder vender alguma coisa. O calor
cada vez aperta mais. Fica difícil estar na feira. Sem toldos..sem guarda sol..não
temos lugar de feira pois não temos posses económicas para comprar um. São demasiadas horas ao sol. Ou à chuva se for inverno.
Não
compensa alugar para a banca tão pequena que temos. Além disso não ganhamos o
suficiente para ter um compromisso mensal. Então nos metemos num cantinho
qualquer. E passamos a vida a fugir dos fiscais que nos dão o ralhete (e multas) pois não
podemos estar nesse cantinho, pois aquilo não é um lugar.
Transpiro por todos os lados. E fico sufocada ao ver os
ciganos que estão de luto. Se eu me sinto assim, como se sentirão eles?
São quase 9h30. É hora dos fiscais chegar. Melhor sair daqui
e ir para o outro lado da feira, onde
costumam passar menos vezes. Não passa lá quase ninguém, mas pelo menos estamos
mais seguras. E carregamos 2 sacos, 4 bancos e 1 platex entre as 2.
Ali sinto-me melhor. Começo apregoar. Digo bom dia quando
param na banca. Mas não me devolvem o bom dia. Só me apetece dar-lhes com uma
bazuca.
Eu não nasci para a
feira. Mas se tem de ser tem de ser. Então trato de sacar o meu lado simpático
e social de mim, e dou o melhor que posso.
Aqui é mais divertido. Estou rodeada de colegas. Os que
possuem lugares e os que não. Os que possuem lugar, lá me deixam um bocadinho
para eu por a minha mini banca.
Entre todos conversamos. Somos um grupo de 10 pessoas pelo
menos.
- Já vendes-te alguma coisa filha?
- Não tia…fiz 5euros…
- Eu ainda pior. Nem estrear.
- E tu Ângelo?
- Alguma coisa..mas estou muito cansado..só me apetece ir
embora..deitei-me eram 4 da manha a empacotar tudo…não compensa estar aqui..mas
já vendi alguma coisa.
- Graças a Deus. Diz a mais velha de todas.
Estou lá. Mas é como se não estivesse. Ligo para a minha mãe
para saber como é que ela está. Sofre muito da coluna e está a cozinhar e a
limpar cozinha.
Envio mensagem para senhoras a perguntar se querem uma
sessão da Mary Kay.
Ligo para o meu pai para saber se a encomenda da Mary Kay
chegou.
Ligo para o meu irmão para saber se já comeu e se deu de
comer às tartarugas.
Envio mensagem à minha diretora, perguntando qual é a
diferença entre o batom semi gel pink, e o batom mate pink soft.
A minha irmã vai para a esquina ver se os ficais vem. Se for
o caso ela avisa-me e eu retiro-me, para não levar mais multas.
Cada vez faz mais calor. A mim só me apetece despir-me em
via publica.
Aparece o ceguinho de sempre. Um idoso. Que vende
raspadinhas. Vem de bengala. Pergunta pela casa de banho. Um dos homens que
vende polos ao meu lado, decide acompanha-lo e dirigi-lo pelo braço até lá.
O idoso agradece e diz:
- Quem diria que ia ser um cigano que me ia levar até à casa
de banho.
Sinto-me desconcertada… porque tanta surpresa?...
13h30, a fome aperta. Vou dar uma vista de olhos à bolsa
para ver quanto dinheiro fiz. E vejo que não há o suficiente para poder ir
almoçar. Melhor bebo um pacote de leite de soja que trouxe para pelo menos
manter a energia.
14h30. A feira está vazia. Hora do almoço. Os colegas
começam a ir buscar sandes de presunto à barraca de sempre. Ou trazem o
fogareiro para assar entrecosto ou sardinhas.
Sinto-me cansada. Suja. E preocupada…mal fiz para o jantar
de hoje.
Chega a minha mãe para nos vir buscar. Carregamos tudo de
volta para o carro.
Aproveito que estou na zona e vou visitar o meu primo. Um de
tantos.
Conversamos um pouco e aproveito para almoçar. A minha irmã
aproveita para ir à piscina.
Não vivem nem nunca viveram, nem nós mesmos, de
qualquer subsídio. Ele trabalha num Banco e a mãe, minha tia, é proprietária de 3
restaurantes. Mas o tempo é escasso. A minha mãe sente imensas dores e ainda há
que ir ao Pingo Doce comprar o jantar.
Estou quase a sair e vejo a minha tia entrar. Vem descansar
uma hora em casa. Deita-se no sofá e fica totalmente offline. São imensas as
responsabilidades.
Desta vez conduzo eu, para que ela descanse um pouco. Vamos
ao Pingo Doce. O calor dentro do carro dá-me náuseas.
Até lá pensamos no que vamos fazer para jantar. Entramos e fazemos tudo à pressa. Queremos é ir para casa.
Até lá pensamos no que vamos fazer para jantar. Entramos e fazemos tudo à pressa. Queremos é ir para casa.
Chego a casa, tomo 1 banho, organizo as malas da Mary Kay e
os produtos. Maquilho-me. E vou apanhar autocarros e comboios e andar a pé com
saltos para ir fazer as sessões. Muitas delas desmarcam quando eu quase chego
ao destino.
Muitas delas dizem sim que adorariam. Enviam-me pedido de
amizade. Vêem o meu perfil e dão-se conta do inevitável. Sou cigana e não dá
para esconder. Nem o meu físico, nem o meu conteúdo a nível de publicações.
Deixam-me de responder ou de atenderem o telefone.
Dirijo-me à sessão seguinte. Ligo para o meu irmão com esperança
de que ele me possa dar boleia. De
momento só temos um carro porque infelizmente a carrinha do meu pai foi à vida.
Sinto-me cansada. Mas há que ter um sorriso na cara.O meu irmão foi trabalhar para o outro restaurante da minha
tia durante a tarde. Comeu e foi para o estúdio de musica onde ele passa a
maior parte do seu tempo, lutando pelo seu sonho.Levou o carro com ele. Então ligo
para a minha mãe.
Diz-me que se eu vender alguma coisa que compre os
comprimidos da tensão para ela e um dos medicamentos para o meu pai que é
doente cardíaco.
- Está bem mãe. Farei o meu melhor.
Sinto-me cansada. Mas há que ter um sorriso na cara.
Adoro o que faço. E posso dizer que a Mary Kay, por muito
fútil que isto possa parecer, salvou a mulher que há em mim.
Odeio cor de rosa. Odeio andar de mala. Odeio cabeleireiros.
Odeio falar dos olhos bonitos do Gonçalo. Não faço ideia qual é o top girissimo
de franjas da Berska. E nas conversas entre amigas sinto-me totalmente excluída
porque as minhas unhas são naturais e eu não faço unhas de gel.
Os amigos que me conhecem de verdade pensam que fizeram-me uma lavagem cerebral.
Os amigos que me conhecem de verdade pensam que fizeram-me uma lavagem cerebral.
No entanto, parei
na Mary Kay. As reuniões aparecem elas todas tipo Reese Witherspoon no filme
Legalmente Loira.
Todas “fru fru”, de saltos altos, com canetas com poms poms
cor de rosa na ponta. E a que mais vendeu nessa semana tem direito a uma foto
com uma tiara. E eu toda rafeira, de leguins e sapatilhas com um rabo de cavalo
no meio delas todas, escarrapachada na cadeira. O pior disto? É que eu gosto.
Fui para a cama no Domingo à noite depois de uma feira, às 3h da manha depois de andar a organizar todas as coisas. Acordo as 8h30 para ir à reunião semanal da Mary Kay, e vou claro em modo automático, só com meio cérebro a funcionar, e elas querem me ver toda fru fru como elas.
Se elas soubessem.....
Mas um dia faço-vos a vontade, fica prometido.
Marco as sessões à hora que seja. Eu sei que deveria dar-me
ao respeito..e dizer “não…eu trabalho até as 19h…daí é tempo para mim”
Mas eu não posso dar-me a esse luxo. Espero que um dia possa
te lo. Sei que vou te lo. Mas de momento não.
Então adapto-me ao horário das minhas clientes, que de
momento, são a maioria (se não todas salvo erro) da minha cultura. O que
significa que eles também vão à feira...e dali vão até Mindelo a voltar comprar
para a feira do dia seguinte. (60kilometros ida e volta, desde Vila Nova de
Gaia). Então a maior parte das minhas sessões com o meu povo são marcadas as
22h
Nunca saio de lá antes da 1h da manha. Com sorte
reencontro-me com familiares. Vejo o meu primo Emanuel cansado (mas ele sempre
nega) depois de ter trabalhado no restaurante. Tal como vi a patroa, neste caso
minha tia, cansada também. Ou às vezes vejo o meu primo Jonatham que é pastor e
tem o seu emprego à parte. E é tão difícil apanha-lo em casa.
As vezes janto em casa do meu tio Miguel. E o vejo sempre
tão stressado… preocupado com o que pode fazer para garantir a comida na mesa
durante essa semana.
Vejo o meu pai, doente cardíaco, a ter que viajar para fora
do país sozinho, e nós sempre com o coração nas mãos com receio que ele passe
mal longe de nós.
Vejo a esposa do meu primo que se dedicou à art nail
sozinha. E que hoje tem incluso o seu próprio gabinete.
Vejo a filha da esposa do meu primo que tanto me enche de
orgulho. Cansada também. Chega a casa tarde e com pena teve de abandonar o seu
ministério na igreja onde ela cantava. Não podia ir aos ensaios. Pois está a
estudar direito e caminha agora para o 3 ano.
Todos os dias tento sempre visitar algum deles. É difícil
apanhar as minhas tias gémeas que tanto amo. Mas nunca as apanho em casa.
Talvez elas leiam isto e possam dar-me um dia para poder visita las :p
Chego a casa, desmaquilho-me. Preencho o meu relatório
pessoal sobre as sessões desse dia.
Os pés palpitam de dor. Os braços estão doridos de ter
carregado com as malas. Os olhos ardem depois de tantas horas maquilhados.
Morro de sono.
Vejo que a minha mãe me guardou um prato de comer pois nem
tempo tive de jantar. Mas nem me apetece. Como uma torrada e um copo de leite.
Acabo o relatório. E vou organizar os sacos da feira do dia
seguinte. Ou organizar a mala para a reunião da Mary Kay caso seja
segunda-feira.
Abro o Facebook com os olhos semi fechados… mal tenho
energia. E pergunto-me quando é que terei um dia de folga para poder ver os
episódios da minha série favorita.
Há tanto que não subo uma receita no meu canal.
Ou quando poderei jogar League of Legends durante horas como
costumava fazer.
Ou desenhar...
Dou uma olhadela no abrigo animal da zona. Queria tanto
voluntariar-me e ajudar.
Ponho-me a organizar as coisas da feira. 2h da manha…não
consigo fazê-lo a tempo…então combino com a minha irmã.
Ela organiza até as 6h da manha e eu vou dormir. E às 6h
acordo e vou eu para a feira.
2h45. Estou na cama. Para amanha o dia se repetir. Até
amanha.
Tania Fonseca Sanchez.
31 anos, mulher, cigana, ser humano. Que respeita, trabalha,
boa gente, não recebe subsídios nem outros privilégios e que luta por um mundo
melhor juntamente com a minha família e como muitos outros ciganos do mundo.
Obrigado Dr. Quintino por me dificultar mais a vida. Obrigado à audiência presente nesse programa que concordou com tudo o que ele disse e ainda se riram. Obrigado a todos os que comentam atrás de uma tela todas estas porcarias que chegam por vezes ferir a alma.
tem vezes que fico furiosa e só me apetece vos atirar gasolina em cima e sacar proveito da fama que tenho.
Obrigado a todos os meus colegas que lutam juntamente comigo contra uma maré tão brava.
Obrigado à minha família que contraria tudo aquilo que leio por aí...
Obrigado à minha equipa de trabalho que me vem como mais uma delas, apesar de não ser fru fru.
Obrigado a todos os racistas que me ajudam a ser uma pessoa mais forte a cada dia.
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